segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Estupro, o que realmente importa.



“(…) I. Crimes cometidos sob a vigência da redação anterior dos arts. 213 e 214 do Código Penal. II. Aplicação da lei penal posterior mais benéfica. Inocorrência de concurso material. III. Com a vigência da Lei 12.015, de 2009, que na nova redação do art. 213 (revogado o art. 214) ao unificar as figuras típicas do estupro e atentado violento ao pudor numa só conduta, a lei nova afastou a hipótese de ocorrência de concurso material. IV. Acórdão que reconheceu a continuidade entre as condutas antes tidas por distintas e reduziu a pena aplicando a lei nova mais favorável. V. Precedentes do Supremo Tribunal Federal (HC 103.353-SP, HC 86.110-SP e HC 96.818-SP). VI. Recurso Especial do Ministério Público improvido. (…).” (STJ – 5.ª T. – REsp. 970.127/SP – rel. para o acórdão Gilson Dipp – j. 07.04.2011 – public. 11.11.2011 – Cadastro IBCCRIM 2459).

Anotação: Com o advento da Lei 12.015, de 07.08.2009, houve sensível mudança no título IV do Código Penal, que passou a ser denominado “Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual”. Entre as várias alterações, uma das mais significantes foi a nova redação do art. 213, caput, do CP, que passou a aglutinar as ações ilícitas que anteriormente recebiam o nomen iuris de estupro e de atentado violento ao pudor.
Esta significativa mudança legislativa fez ressurgir duas grandes discussões:
(a) há um único crime quando o agente, em um mesmo cenário fático e contra a mesma vítima, praticava as condutas anteriormente denominadas de estupro e atentado violento ao pudor (?).
(b) é possível o reconhecimento do crime continuado quando o agente, em contextos diferentes, mas nas mesmas condições de locus, tempus e modus operandi, perpetra as infrações antevistas no art. 213 (na redação antiga) e no revogado art. 214, ambos do CP (?).
Na vigência da redação originária dos aludidos dispositivos, a resposta para as duas perguntas era sempre negativa. Com efeito, entendia-se majoritariamente que era impossível o reconhecimento do crime continuado entre o estupro e o atentado violento ao pudor e, também, que haveria concurso material de delitos quando o agente, nas mesmas circunstâncias fáticas, excetuando-se a hipótese do prelúdio do coito, praticasse as ações previstas nos antigos arts. 213 e 214 do CP, sob o singelo fundamento de que se tratavam de tipos penais distintos. Neste sentido: STF, HC 95.413;HC 94.504; STJ, HC 102.362; HC 86.860; HC 85.034.
No entanto, com a mencionada junção dos dois dispositivos em um único tipo penal, o argumento utilizado pela corrente majoritária claramente caiu por terra.
Porém, a partir daí, iniciou-se nova celeuma com relação à natureza jurídica de tal infração penal. Tratar-se-ia o estupro de um delito de conduta única, misto alternativo ou misto cumulativo?
A primeira corrente, capitaneada por Vinicius de Toledo Piza Peluso (O crime de estupro e a Lei 12.015/2009: um debate desfocado. Bol. IBCCrim, out. 2009, n. 203, p. 2/3), entende “que o novo art. 213 do CP descreve e estabelece uma única ação ou conduta do sujeito ativo, ainda que mediante uma pluralidade de movimentos. Há somente a conduta do agente de constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, e tal conduta de constrangimento tem como objeto material uma pessoa (alguém), que, por sua vez, deve ter conjunção carnal ou praticar ou permitir que com ela se pratique outro ato libidinoso”. Na mesma linha, Alberto Silva Franco,Rafael Lira e Yuri Felix (Crimes hediondos, 7. ed., São Paulo: RT, 2011, p. 473).
A segunda corrente, por sua vez, considera o estupro um tipo misto alternativo (ação múltipla, conteúdo variado), o qual seria formado por dois núcleos (conjunção carnal e atos libidinosos), sendo que “´o agente, mesmo realizando duas ações, estará violando a norma apenas uma vez´, em razão da incidência do princípio da alternatividade” (PUPO, Matheus Silveira. O novo art. 213 do Código Penal, uma verdadeira novatio legis in mellius. Bol. IBCCrim, 205, p. 13-14, dez. 2009), praticando, portanto, apenas um único delito. Este entendimento também é comungado por Guilherme de Souza Nucci (Crimes contra a dignidade sexual, 2. Ed., São Paulo: RT, 2011) eRogério Grecco (Código Penal comentado, 4. Ed., Rio de Janeiro: Impetus, 2010).
Aliás, é importante ressaltar que para os adeptos destas duas vertentes de pensamento (crime de conduta única ou misto alternativo), é plenamente possível o reconhecimento do crime continuado entre diversos estupros, quando preenchidos os requisitos do art. 71 de CP, independentemente da forma de execução (conjunção carnal, coito anal etc.).
Por fim, a terceira corrente, considera que o delito do art. 213, caput, do CP é um tipo misto cumulativo, no qual existiria a junção imprópria de mais de um crime num mesmo dispositivo legal. Melhor dizendo, “há disposições legais que contêm, independentemente, mais de uma figura típica de delito, ou seja, nas quais há tipos acumulados. Neste caso, haverá sempre concurso, em caso de realização de mais de um tipo” (Fragoso, Heleno Cláudio. Lições de direito penal – Parte geral, 16. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 2003).
Além disso, porque o estupro possui núcleos com forma de execução diversa (conjunção carnal e atos diversos de penetração), malgrado estarem dentro de um mesmo dispositivo, os adeptos desta corrente entendem não ser possível o reconhecimento do crime continuado entre as condutas dos antigos arts. 213 e 214 do CP.
De outra banda, a partir do início da vigência mencionada lei, iniciou-se também um claro dissídio na jurisprudência dos Tribunais Superiores. Com efeito, o STF, ora adotou a ideia de que o estupro é crime de conduta única (HC 86.110; HC 99.295), ora afirmou ser um delito de tipo misto alternativo(HC 96.818; HC 103.353), mas, consequentemente, sempre reconhecendo a possibilidade de crime continuado entre vários estupros e, também, afastando o concurso material quando os vários delitos são cometidos em um mesmo contexto fático. A 6.ª Turma do STJ, sem aderir expressamente a uma das primeiras correntes doutrinárias aqui expostas, vem seguindo a mesma orientação do Pretório Excelso (HC 144.870).
Na contramão, a 5.ª Turma do STJ vinha reconhecendo, em reiterados julgados (HC 105.533; REsp. 987.124; HC 160.313), que o estupro era um tipo misto cumulativo (3.ª corrente), com todas as consequências daí advindas (impossibilidade de crime continuado e necessário concurso material).
Por isso, muito relevante o precedente em análise, eis que revela que a 5.ª Turma vem se alinhando com o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência.
Como citar: PUPO, Matheus Silveira, Comentário ao HC n.° 125.850 do C. Superior Tribunal de Justiça – Resenha de Jurisprudência, Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais – IBCCRIM (Caderno de Jurisprudência) n.º 226, ano 19, páginas 1.490 e 1.491, setembro de
2011.

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